Zen Guitar
- Humberto Piccoli
- 13 de jul. de 2016
- 6 min de leitura
Esta semana li um livro muito interessante, chamado Zen Guitar, de Philip Toshio Sudo. O autor se dispõe a aplicar conceitos filosóficos do oriente na prática da música ocidental. Apesar de se chamar Zen "Guitar", não há quase nada específico para guitarristas. Todo músico pode tirar lições muito boas de qualquer capítulo. Eu o chamaria de "Zen Music".
O objetivo das aplicações é de caráter muito mais filosófico do que prático. Porém, nada mais importante do que ao menos se questionar sobre os porquês da prática musical antes de começa-la sem rumo certo. Nesse sentido, as reflexões que esse livro propõe são fundamentais e de grande importância para estudantes e educadores.
Antes de qualquer coisa, adianto aqui que não sou adepto de nenhuma religião ou crença, seja de onde ela vier. Mas estou sempre aberto a aprender e a refletir, inclusive quando a fonte das reflexões vêm de escritos antigos e considerados místicos. O livro aqui descrito não tem nenhum traço de "pregação", apenas reflete sobre conceitos e filosofias orientais. É um livro muito bom.
Quero discutir algumas dessas reflexões aqui que podem servir de grande ajuda para qualquer pessoa que tenha o mínimo interesse por música, ou por outras artes, ou pela vida.
A faixa branca e a mentalidade do iniciante
A reflexão principal que o livro traz é a idéia de que somos eternos "iniciantes". Para aprendermos qualquer coisa, é necessário vestir a faixa branca da humildade e compreender que precisamos ter sempre uma atitude aberta para o aprendizado. Não importa a sua experiência, não importa a experiência dos outros. Você sempre terá muito a aprender e nunca conseguirá aprender tudo.
Segundo o autor, são necessários 4 passos para aprender a tocar qualquer instrumento:
1. Vestir a faixa branca
2. Pegar o intrumento
3. Afiná-lo
4. Tocar
Simples assim. Você só pode aprender algo de fato se experimentar. Os livros e professores podem ter milhares de informações úteis, mas você só aprenderá alguma coisa quando pegar seu instrumento e toca-lo. Isso porque a sua relação com o instrumento é única, e é só você que pode sentir de fato quais são as suas limitações e quais os seus objetivos. Se você quer aprender a tocar e não sabe o que fazer, toque. As perguntas virão e você, tendo vestido a faixa branca do iniciante, vai correr atrás das respostas até acha-las.
Faixa branca à faixa preta
Levando em consideração que você já tenha vestido a faixa branca do iniciante, o autor lista 12 pontos de foco fundamentais na prática do instrumento.
Os 12 pontos de foco são:
1. Espírito: a prática de um instrumento compreende a comunicação entre o corpo e a mente. Somente com muita prática o corpo responde à mente e corresponde às nossas expectativas. Por isso mesmo, o processo pode ser muito decepcionante e longo. O autor descreve três formas de manter o estado de espírito apto a transformar a sua energia e tempo em coisas produtivas:
- Não pergunte, estude e pratique.
- Sete quedas, oito levantadas: as falhas são comuns em qualquer processo de aprendizado. Não deixe pensamentos como "Eu não sou bom o suficiente" ou "minhas mãos não foram feitas para isso" tomarem conta do seu espírito. Jogue tudo isso fora e levante-se do mesmo lugar que caiu.
- O único inimigo está dentro de você. O que importa para se ter progresso não são os desafios, mas sim como você reage a eles. Aplique isso ao seu estudo e a sua vida e perceba o seu crescimento como pessoa.
2. Ritmo: o autor trabalha com a idéia de que cada um possui um ritmo próprio e o desafio de todos é alinhar esse ritmo interno com outros, ou "sentir o groove". Pode-se expandir a conexão com ritmo do mundo em todas coisas: nas mudanças de estações do ano, no tique-taque do relógio, ciclos da lua. Tudo pode ser medido em termos de ritmo, mesmo que não haja um pulso perfeito. Além disso, segundo o autor, não há como sentir o ritmo com a mente, apenas com o corpo. Explore essa idéia!
3. Técnica: hoje em dia não é difícil entender o que é a técnica de um instrumento. Existem milhares de publicações sobre todas as formas de se tocar qualquer instrumento. O que o autor enfatiza, porém, é que se deve ter sempre a certeza de que o treino técnico tenha um objetivo musical. A função da música deve ser comunicar uma mensagem sonora, não há espaço aqui neste conceito zen para demonstrações de habilidade.
4.Sentir: aí está uma conceito com o qual eu me identifico muito. Segundo o autor, um caminho mais satisfatório para o aprendizado efetivo da música é senti-la antes, e definir significados de importância em sua mente. Isso tudo ANTES de consultar métodos e teorias.
5. Perfeição: aqui é um ponto em que discordo. Segundo o autor, todo o treinamento ou estudo busca a perfeição. Para mim esse é o método perfeito para se atingir a frustração. Porém ele desenvolve algumas idéias interessantes a respeito do estudo. Por exemplo, ele diz que, com a prática, os músculos adquirem sua própria inteligência. Depois de muito estudo, assim que necessário, os músculos são acionados sem nenhum tipo de esforço mental.
Essa idéia é sustentada por estudos científicos sobre os hábitos. Estou lendo um livro chamado "O Poder do Hábito" de Charles Duhigg, que explora bem essa idéia. Duhigg diz que sempre que houver um gatilho, um processo e uma recompensa iguais sempre, o cérebro começa a lidar com isso automaticamente, guardando energia para outras ocasiões.
6. Erros ou enganos: sempre acontecem. Evite-os, mas quando eles ocorrem, transforme-os em energia criativa. Mude, experimente.
7. Degraus e caminhos: não existe um fim quando se quer aprender qualquer coisa. Tenha isso em mente e você saberá respeitar o seu próprio tempo. O que vale é o dia de hoje, se você se dispuser a aprender o máximo hoje, tenha a mesma atitude amanhã e depois. Mas o que importa é hoje.
8. Disciplina: faça o que deve ser feito; quando deva ser feito; da melhor fome possível; e faça dessa mesma forma sempre que possível.
9. Limites: entenda que todos temos limites, e eles são diferentes para cada um. Não caia na armadilha de querer ser ou tocar como o outro. Entenda seus limites, puxe-os até a linha do possível e aprenda com esse processo. Se o desafio for fácil, faça melhor do que o esperado e alcance um patamar de aprendizado realmente desafiante. Se for muito difícil, faça o possível para vencê-lo.
10. Siga em frente: é normal focarmos no fim da linha. As vezes nos imaginamos tocando algo muito difícil super bem. O fim da linha só chega no fim. Até lá você tem todo o caminho a percorrer. Não importa em que etapa do processo você se encontra, a sua entrega deve ser igual, sempre. Mesmo em tarefas pequenas, como tocar um simples acorde, é necessário um estado de espírito decisivo. Se você pensar demais, o tempo nos atropela e os erros acontecem.
11. Gosto: respeite o seu próprio gosto. Só assim você pode ser sincero com o que está fazendo e criando. É só isso que importa. "Toque a verdade e ela continuará sendo verdade quando os ouvintes estiverem prontos para escuta-la".
12. Colaboração: companhia, visão e química. Saiba qual o seu papel em um grupo e o desempenhe da melhor forma possível. Colabore. O peso dos seus objetivos deve ser o mesmo dos objetivos de outros. Saiba liderar e, se não for o caso, saiba ser liderado.
Faixa preta
"Aqueles que treinam duro e por longo tempo chegam a um ponto em que corpo, mente e espírito se equilibram. O corpo adquiriu sua própria inteligência e a mente confia nessa inteligência, permitindo ao espírito se expressar livremente."
Chegar num nível de proficiência em qualquer coisa requer muita responsabilidade, disciplina e caráter. O objetivo principal de uma faixa preta no caminho da música não é palpável. Você mesmo terá que compreender e aceitar a sua dívida com o mundo e, ao saber retribuir, sua música e sua vida farão sentido.
O fim da linha em nada difere do resto do caminho. Vestir a faixa branca da humildade é requisito básico e recorrente. Uma das metáforas mais citadas pelo autor é que só se alcança a faixa preta quando se usa a branca tanto, mas tanto, que ela suja, apodrece e se torna preta conforme o nível de dedicação.
O livro delibera ainda sobre muitos outros conceitos e metáforas que podem ser muito úteis ao seu estudo. Recomendo uma leitura cuidadosa e sem preconceitos. Estou pensando seriamente em relê-lo.
Até a próxima!